segunda-feira, 13 de junho de 2016

A mentira esfregada na cara do prefeito do Rio

Por Lúcio de Castro* em 17/03/2015. Originalmente publicado no site ESPN
Tento puxar pela memória. Aperto os olhos, vou recuando no tempo. Mas nem que ficasse mais dois anos nesse exercício de franzir a testa e contrair as pálpebras, ação comum quando se tenta salvar alguma recordação perdida, conseguiria resultado satisfatório.
Por mais força que faça, não me lembro de um desmentido tão categórico, na lata, sem qualquer esboço de resposta, como o que Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), esfregou na lata do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Nem a funda de um black block seria tão devastadora. Explodiu na testa de Paes.
Depois de anos na trincheira para construir o campo de golfe olímpico que invade uma reserva ambiental, o alcaide carioca tenta se descolar da paternidade do monstro, da aberração, do desaforo com a cidade e com o cidadão carioca. Mais do que isso: com qualquer um, de qualquer lugar, capaz de se indignar com as coisas feitas ao arrepio da lei e da ética.
Com o jogo virando, a sociedade começando a chiar e o Ministério Público em cima, Paes tentou sair de fininho.
"Eu odeio ter de ter feito este campo de golfe. Por mim, não teria feito este campo de golfe nunca."
Era melhor ter ficado quieto. Só o poder mesmo é capaz de algo assim, de permitir que alguém fale algo e ache que em volta todo mundo acredita.
GAZETA PRESS
Eduardo Paes. prefeito do Rio de Janeiro
Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro
O poder, esse bálsamo que não pode cair na mão de qualquer despreparado, pois cega e faz o sujeito achar que todo mundo é bobo. No dizer do escritor colombiano Alonso Salazar, sabedor do que fala por ter sido prefeito de Medellín, capaz de distorcer tanto o que está a sua volta, seja prefeito ou no mundo corporativo, como já vimos tantas vezes: "quando se tem tanto poder e a capacidade de decidir sobre tantas coisas e tantas vidas, a relação com a realidade se perde. O poderoso cria seu próprio mundo, uma espécie de realidade virtual, da qual não há jeito que ele volte."
Pois só mesmo a privação de sentidos de estar cercado de puxa-sacos que só aplaudem poderia fazer o sujeito achar que todo mundo esqueceria tudo o que tinha sido feito e dito até ali.
E foi o próprio presidente do COI quem botou as coisas no devido lugar.

"Fiquei surpreso com as declarações do prefeito, porque, como todos sabem, o prefeito pressionou muito pela construção desse campo. Tenho certeza que ele pensou muito antes da decisão de construí-lo."
E mais não falou Eduardo Paes, diante da humilhação de um dos maiores "Pega Na Mentira" dos últimos anos.
Não vou entrar aqui nos pormenores da aberração que é todo o processo da construção do campo de golfe olímpico no Rio. A espetacular reportagem de Anne Vigna, no site da Agência Pública, que presta serviço incomensurável ao jornalismo, é mais do que suficiente para que se entenda a história. Basta ir lá no site da "Agência Pública", agência de reportagem e jornalismo investigativo.
Estamos diante de uma aberração que não pode passar. Já basta carregarmos todos nós, em nossos armários, o cadáver do Maracanã, destruído pelos mais escusos interesses e proxenetado a gosto de Sérgio Cabral Filho. Quis o destino que aquilo a que sempre me referi como "A Maldição do Maracanã", para seus destruidores, esteja cada dia mais viva, um Montezuma a atormentar Cabral, Pezão e Regis Fichtner, agora mais encalacrados do que condenados no corredor da morte. O 'Prefeito Pinóquio' da vez tenta se livrar da maldição, mas já não é possível. O cadáver de lutar pela destruição de uma reserva ambiental e entregar para a especulação imobiliária é todo dele.
Se alguém tem dúvida da mudança de tom escrachada pelo presidente do COI, vá na rede de vídeos por demanda do seu pacote de TV por assinatura. Está lá, em um "SporTV Repórter" de dois anos atrás, sobre 2016, o 'Prefeito Pinóquio' @eduardopaes_ se vangloriando da solução que entregou um pedaço do paraíso para os "amigos do Rei" e desdenhando do que era reserva ambiental. Facilito o trabalho do leitor aqui se quiser e dou o tempo da fala para que vá direto e se poupe de assistir a um desfile de louvações olímpicas. Diz o 'Prefeito Pinóquio' com 39.24 minutos: "Encontramos solução privada. Numa área, aí é muito verdade, constantemente degradada, ali era uma cimenteira."
Então por que diabos agora que MP e opinião pública estão em cima, "odeia ter feito este campo de golfe"? Odeia ter "encontrado a solução privada" que antes exaltava? Odeia acabar com uma cimenteira?
O que há de errado com a imprensa?
Minha questão aqui não é dar os detalhes da monstruosidade que está se cometendo no Rio em nome de tal projeto olímpico (e logo agora que já sabemos de cor e salteado o quanto é balela que grandes eventos ajudam na economia, não é mesmo? Ao menos espera-se que nenhum cretino volte a repetir isso). Minha questão é a parte que me cabe nesse latifúndio: tentar olhar para a própria retaguarda. Simples: o que foi feito na imprensa depois que o gringo do COI lavou e esfregou a cara do prefeitinho na parede de chapisco?
O que há de errado com a imprensa que não parou as máquinas para ir muito fundo no desmentido impressionante de Thomas Bach? O que é que há com nós dois, amor, diria aquela canção? Diria eu pra minha profissão. O que que há com nós dois, o que que há contigo que o mundo não parou para ver o que está por trás dessa monstruosidade do campo de golfe construído à sorrelfa. À socapa. Na nossa cara. Tão vergonhoso que agora o @eduardopaes_ tenta sair de fininho e limpar as digitais. Não dá mais. Tarde demais.
Por mais que estejamos vivendo um tempo triste demais. De imprensa de cócoras, exercendo cada vez menos seu dever de fiscalizar o poder. Quando penso em tanta gente da geração acima da minha na profissão, que pagou no pau de arara para que pudéssemos escrever hoje e vejo, apesar das coisas boas aqui e acolá, tanta coisa sucumbindo na força da grana, só me ocorre pedir desculpas para essa turma.
E isso é muito sério. Porque, queiram o não, o país é outro quando se pensa principalmente naquele Brasil do pau de arara acima referido (que alguns sem o mínimo de massa cinzenta que nem merecem dois toques de máquina querem de volta exatamente por não possuirem nem dois neurônios).
Um Brasil onde as coisas, ainda que com seus problemas, não estão indo mais direto pra gaveta de engavetadores e a turma do andar de cima, embora bem menos que a raia miúda, pode ir pro xilindró. Mas que ainda distorce vergonhosamente as coisas nas suas páginas, que não publica e não vai atrás de uma verdade esfregada na cara de um prefeito.
Para que se entenda didaticamente a diferença de quando a imprensa cumpre seu papel fiscalizador e quando, a via de regra, se finge de morta por algum estalar de dedo do andar de cima, basta lembrarmos de casos exemplares na própria cidade do Rio. O ponto xis de tudo é a fiscalização do orçamento, o olho atento nas LDOs (Leis de Diretrizes Orçamentárias). Se algo está sendo feito, algum projeto está sendo tocado, e o orçamento se camufla, a LDO atrasa sistematicamente, é o papel da imprensa, da sociedade gritar, e não falamos aqui de gritaria seletiva.
Na prática, é lembrar do caso do Museu Guggenheim. Imprensa, sociedade civil, todo mundo apontou o dedo para a aberração e a transparência orçamentária se impôs. Escolado com o tombo que a sociedade determinou, Cesar Maia se escaldou no projeto seguinte da Cidade da Música e escamoteou o orçamento diante do silêncio cúmplice da imprensa até o limite, quando aí sim começou a gritaria. Mas era tarde, e o monstrengo viceja em toda sua estupidez de elefante branco em um entrocamento entre duas vias cafonas que sonharam um dia em ser a não menos cafona Miami.
Não foi diferente o assassinato do Maracanã. Só mesmo o silêncio cúmplice da imprensa poderia permitir o avanço da maior licitação de cartas marcadas de toda a história da humanidade. Nem mesmo aquela página gloriosa do também glorioso Jânio de Freitas, quase solitária voz nesse momento triste de nossa imprensa, quando mostrou que a Norte-Sul era jogo marcado, talvez nem mesmo aquela histórica reportagem tenha tratado de uma licitação tão marcada quando a que deu o Maracanã para Eike, Odebrecht e cia. Nem mesmo algum faraó fez alguma pirâmide com licitação tão marcada como a do Maracanã.
Estamos diante de um momento assim novamente. Ninguém viu o tal estudo de viabilidade que garante ser inviável o golfe no Itanhangá. Ninguém consegue entender a conta que poupa R$ 60 milhões da prefeitura em troca de um bilhão para a iniciativa privada. Ninguém consegue entender como se permite dar um pedacinho do paraíso e deixar que se construam 23 edifícios de 22 andares em área de prédio de 6 andares. Mas afinal, se para isso não se bate panela, para isso não se fica indignado, é mais fácil para alguns poder dizer que "odeia ter feito isso".
Mesmo com alguém vindo de fora e dizendo com todas as letras que é mentira. Talvez, como disse brilhantemente o urbanista Luiz Fernado Janot em seu artigo "O Jogo Jogado", falando sobre o modelo de planejamento que avança com o escudo de 2016, talvez esse jogo já tenha sido jogado. Com a cumplicidade do silêncio de uma imprensa cada dia mais seletiva em escolher os armários que quer abrir para mostrar cadáveres. Sem entender que assim vai desenhando seu próprio cadáver.

* Jornalista e historiador, Lúcio de Castro é convidado do próximo Controversas. 

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