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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A mulher no jornalismo esportivo: mais um campo de luta contra o preconceito

 
Fernanda Gomes, Maria Carolina Haubrich e Gabriela Rossi

O debate com a repórter e apresentadora Carol Barcellos, ex-aluna da UFF, atraiu especialmente a atenção da plateia pela temática particularmente sensível a ser abordada: as questões de gênero, o assédio, a valorização da beleza como forma de machismo, os preconceitos contra a atuação da mulher no jornalismo, particularmente no jornalismo esportivo.

Carol, que forma com Clayton Conservani a dupla de repórteres do programa Planeta Extremo, da TV Globo, considera que os obstáculos enfrentados pelas mulheres nesse ambiente de trabalho dizem respeito a uma questão mais geral: as limitações que a mulher tem na sociedade e a sua luta pela conquista de direitos. Embora as mulheres, hoje, tenham presença maciça no jornalismo, a editoria de esportes ainda é vista como uma área prioritariamente masculina. É uma questão cultural: somos acostumados, desde pequenos, a ouvir que “futebol é coisa de homem” e, em geral, acompanhar o nosso principal esporte, ir aos estádios, discutir futebol são coisas ainda vistas como próprias da cultura masculina. 

“Está muito claro que a mulher, brigando pelo seu espaço no jornalismo esportivo, está brigando pelo seu espaço na sociedade”, argumenta, lembrando que há uma diferença muito grande entre homens e mulheres na sociedade, como o fato de a mulher ainda ganhar menos que o homem em tantas profissões. Por isso, frisa: “a questão antecede o jornalismo esportivo, é uma coisa da sociedade”.

Carol diz que, ao cobrir futebol, percebe olhares diferentes nos clubes, ouve piadinhas, cantadas: é o mesmo assédio que todas as mulheres encaram na rua. Mas reage bem a isso: “nessas horas, tem que ter postura, atitude e não dar confiança”.

Ressalta, entretanto, que o quadro de desigualdade entre os sexos vem se modificando. Cresceu bastante o número de mulheres no jornalismo esportivo e não só na TV – o que, para muitos, poderia se justificar pela valorização da beleza, como forma de reiterar o machismo –, mas também entre as mulheres que escrevem sobre esporte.

Única mulher na equipe do programa onde atua, composta por mais dez homens, Carol diz que mantém excelente relação com esses colegas. Ela conta que sentiu qualquer preconceito da parte deles, mas sim alguma dúvida sobre sua capacidade física em suportar algumas situações, dada a necessidade de condicionamento físico para realizar as pautas do Planeta Extremo.

“As pessoas ainda associam a mulher a uma coisa frágil, e talvez a gente tenha sim uma fragilidade, mas isso é diferente de ser incapaz de fazer alguma coisa. Eu acho que tenho algumas fragilidades como um homem tem, também”. Preparo físico não era algo estranho à repórter, que sempre gostou de praticar esportes e já tinha, inclusive, participado de uma maratona, mas precisou obedecer a uma rotina parecida com a de um atleta para poder se preparar adequadamente para o programa.



Contra o estereótipo e o assédio


O desgaste físico, aliás, contraria a ideia de que a mulher precisaria sempre estar linda para aparecer na tela: basta imaginar as vezes em que as reportagens lhe exigiam ficar vários dias sem tomar banho ou dormindo no chão. “A boa aparência dura dois dias, não mais que isso”, disse Carol.

Ela reconheceu, entretanto, a preocupação da TV com a estética – não exatamente com a beleza –, que é própria do meio. Preconceito há, de fato, no enfoque das reportagens sobre mulheres atletas, como fica evidente na criação de rankings do tipo “Top 10: as mais belas lutadoras do MMA mundial”, “As 10 jogadoras de futebol mais gatas do mundo”, entre outros.

Por que não limitar a atenção à atuação das atletas? “É preciso ter cuidado com essa questão”, argumentou Carol. “Assim como quando uma mulher é estuprada e falam ‘mas olha a roupa que ela estava usando’, às vezes falam ‘a fulana, olha o shortinho que ela está usando’. Ela usa o que ela quiser, não é? Está jogando? É atleta? Tem resultado? Usa o que quiser”.

Carol acredita que as atletas não precisam deixar de ser vaidosas ou femininas para que alguém as respeite. Considera que esta é também é uma questão social. “Quando a gente começar a ver a mulher de outra forma, isso vai naturalmente se traduzir em tudo que a gente faz e no nosso trabalho. Isso é um processo ainda, né. A gente ainda tem que explicar por que a mulher pode usar o que quiser e não ser estuprada, então o processo ainda é um pouquinho longo”.

A jornalista não mencionou, entretanto, o papel dos jornalistas na reiteração dos estereótipos que associam mulher e beleza, nem a responsabilidade da própria imprensa para alterar esse quadro.

Fontes de inspiração


Quando questionada sobre suas referências na profissão, Carol não pensa apenas em quem cobre esporte. “Antes de ser jornalista esportiva eu sou jornalista, e isso é muito claro pra mim. Tenho duas referências muito fortes: o Caco Barcellos, que pra mim é genial, e a Sonia Bridi, que eu acho uma repórter espetacular, sabe contar histórias com uma facilidade, um jeito muito natural”.

No esporte, cita duas colegas de emissora: Glenda Kozlowski e Fernanda Gentil. “A Glenda provou que você não tem que perder a feminilidade para falar de esporte, e sempre falou com muita propriedade. Também gosto muito do trabalho da Fernanda. Eu não preciso ser boleira pra falar de futebol, não preciso falar de um jeito masculino pra falar de esporte, para as pessoas me respeitarem”.

Como leitora ou espectadora, Carol se irrita quando vê ou lê matérias sobre futebol direcionadas às mulheres falando sobre a beleza dos jogadores, quando o que interessa é a atuação deles e as histórias que podem ser contadas, e que fogem do óbvio. “Me conta algo que eu não tenha visto. Quem é esse cara? De onde ele vem? Qual a história dele? Como ele começou?”.  

Por isso valoriza especialmente o repórter Pedro Bassan: “Às vezes eu assisto um jogo e leio a matéria dele e digo, ‘Cara, esse cara viu outro jogo’, porque ele consegue contar uma história de um jeito sensacional sem apelar, sem fazer gracinha, de uma forma inteligente. Pra mim ele é um dos melhores, entra pra história, realmente é um fenômeno”.

O terremoto no Nepal, uma experiência extrema

Andrezza Buzzani

Carol Barcellos nunca tinha pensado em trabalhar com jornalismo esportivo. Sempre gostou de economia, inclusive fez alguns cursos específicos na área. Mas, depois de estagiar na Band e na Agência EFE, passou pelo processo seletivo da Globo e foi chamada para a editoria de esporte.

Não teve dúvidas: “O esporte foi a oportunidade que apareceu para mim ali e eu agarrei. Sempre gostei de esporte, mais até pela minha vida pessoal, mas para a minha vida profissional não era um objetivo. Mas acho que, se aparece uma oportunidade, você agarra, porque às vezes não vai pintar outra. Aquela ali não era a minha e acabou que foi dando um caminho na minha vida totalmente diferente do que eu imaginava, acho que muito mais divertido do que eu esperava”.

Com o Planeta Extremo foi a mesma coisa. “Eu vi como uma oportunidade de ir a lugares com histórias sensacionais, mas que para estar naquele lugar eu precisaria me preparar”. Inclusive fisicamente, por motivos óbvios.

O espírito de aventura, porém, não chegaria a ponto de levar Carol a imaginar uma experiência realmente extrema e nada divertida: a de estar no meio de um terremoto. Foi em Katmandu, capital do Nepal, quando se preparava para gravar o programa de abertura da temporada, em fevereiro de 2016.

Dois dias após a chegada no destino, a equipe estava na estrada a caminho da cobertura do primeiro episódio, quando o tremor ocorreu. “Foi diferente de tudo o que já tínhamos vivido”, disse Carol. Jornalistas e técnicos já estavam acostumados com alguma precariedade, mas tiveram de enfrentar preocupações maiores com comida, abrigo, energia, água, comunicação. Não tinha ideia de quando poderiam retornar ao Brasil. E tiveram também de improvisar, porque a notícia agora era o terremoto e durante algum tempo eles foram a única equipe estrangeira do mundo a estar no local, trazendo informações ao vivo sobre a catástrofe.

“A gente tinha uma reunião e normalmente, por causa do fuso horário, saíamos do lugar em que estávamos alojados, por volta das três da manhã, para entrar ao vivo no Jornal Nacional. Era importante informar o que estava acontecendo, havia lugares em que a gente chegava, mas o resgate nunca chegou”, conta Carol. “Era muita tristeza, muita destruição”.

A jornalista comentou a repercussão sobre sua reação quando estava realizando uma entrevista na embaixada brasileira no Nepal e um tremor ocorreu justamente durante a gravação. A repórter recebeu um dos comentários de Zuenir Ventura, que tinha escrito sobre o episódio. “Ele disse que, quando me viu na TV, aquela minha reação (de medo) tinha dado mais informações do que qualquer coisa que eu tivesse dito”. Em contrapartida, outros jornalistas criticaram seu comportamento e a consideraram despreparada para a tarefa. “Mas quem está preparado para cobrir um terremoto?”, perguntou. “É possível ficar frio, imparcial, diante disso? O jornalista antes de tudo tem que ser gente. Eu sou jornalista porque gosto de gente, gosto de história”.


Para gravar o Planta Extremo depois dessa experiência, a equipe se reuniu e decidiu, por consenso, ir para um alojamento em uma cidade que não havia sido afetada e continuar dali. “A gente encarou aquilo também como uma chance de mostrar uma área do Nepal e um pouco daquele povo que tem uma história superbonita e sair de lá com uma outra imagem, acho que não só para a gente, mas para quem fosse assistir também. Mostrar um outro lado do Nepal”, contou a uma plateia entusiasmada de ouvir tantas experiências. 



A dor e a delícia de ser repórter esportivo

João Vítor Reis e Thaiane Mariano Ferreira

O que é preciso para ser um bom repórter esportivo? E quais as diferenças na forma de conduzir o trabalho do repórter nas mais variadas plataformas comunicativas? Esses questionamentos foram os norteadores dos debates da segunda mesa do Controversas, com os repórteres Gabriel Fricke, do Globoesporte.com, e Marcos Carvalho, do SporTV, e mediação do jornalista Roberto Falcão.

Gabriel Fricke começou contando seu real objetivo quando ingressou na carreira de jornalista: trabalhar no rádio. Conseguiu oportunidades no meio  e depois em uma assessoria de imprensa. Posteriormente, foi contratado para fazer parte da equipe de esportes olímpicos do Globoesporte.com. Marcos Carvalho admitiu que sempre teve preferência pelo jornalismo esportivo, porém isso não o impediu de iniciar a carreira em outros setores do jornalismo da Rede Record. Aceitou a missão porque, segundo o próprio Marcos, desafios o estimulam.

Gabriel disse que o primeiro passo para alcançar a excelência na profissão é estar sempre bem informado. Além disso, ele recomendou a busca de informações onde ninguém está procurando e o uso de formatos menos usuais de divulgação de conteúdo, como vídeos na internet.

Marcos sugeriu aos aspirantes a jornalistas que decidam logo a área na qual pretendem atuar. Desse modo, já podem começar a absorver o que é mais importante para a própria formação. Entretanto, ressaltou que é primordial saber fazer jornalismo em geral. Ainda enfatizou que o bom profissional deve ter resiliência e lembrou que, apesar de as redações cobrarem a informação que todos têm, também demandam conteúdos exclusivos.

Ambos pontuaram algumas diferenças entre as diferentes plataformas noticiosas. Quando o ofício é executado na televisão, valoriza-se a parceria, com a tendência de cada indivíduo realizar uma tarefa específica. Nas demais plataformas, incluindo a on-line, predomina o trabalho individual, com uma única pessoa exercendo diferentes funções.


Leveza X superficialidade – Uma das questões colocadas pelo mediador Roberto Falcão foi a superficialidade do jornalismo esportivo. Muitos acreditam que a cobertura da área não requer detalhamento e investigação. Para Marcos, esse tipo de jornalismo deve ser leve, mas  não superficial. É importante que o conteúdo tenha a capacidade de emocionar e causar empatia. 

Gabriel ressaltou a necessidade de “sair da caixinha”, no cotidiano da profissão. No site do Globo Esporte, por exemplo, não se fazem mais crônicas esportivas antes dos clássicos. Em vez disso, os editores veiculam imagens, vídeos e estatísticas.

Outra ferramenta importante, ainda segundo o repórter do Globoesporte.com, é o uso  das redes sociais. O feedback rápido, promovendo uma maior interação com o público, favorece a abordagem de assuntos variados. Um exemplo é o compartilhamento de informações durante os jogos de futebol. O internauta, ao expor sua opinião em tempo real, acaba por acrescentar um viés para a história que o veículo está contando, de acordo com Gabriel.

O Selfie Olímpico é um projeto criado com a participação de Gabriel no Globoesporte.com, com o objetivo de apresentar ao público um lado pouco conhecido dos atletas olímpicos. Por meio de fotos descontraídas, os atletas se expõem de forma mais pessoal, contando sobre  paixões e hobbies, dentre outras coisas. Juliana Veloso dos saltos ornamentais; Marcos D'Almeira, do tiro com arco; e Victor Panalber, do judô, já foram personagens do projeto. Trata-se de outro exemplo de como o jornalismo esportivo tem apostado em novos formatos.

Roberto Falcão pediu para os entrevistados falarem sobre a rotina pesada da profissão e do lado positivo. Em um primeiro momento, Marcos destacou os sacrifícios, como a perda dos finais de semana e feriados, e as  crises econômicas que afetam as redações. Mas disse também que jornalismo é prazeroso. Chegou a brincar dizendo que as pessoas que optam pelo ofício em geral não buscam em primeiro lugar qualidade de vida e dinheiro. Para ele, que quem escolhe o jornalismo gosta de contar histórias, conhecer gente diferente e, principalmente, crescer como ser humano.

Sobre prazeres da profissão, Gabriel expôs a alegria de ter gerado, em função de uma matéria, dois patrocínios para um esportista. “Ver os sorrisos e a vida das pessoas mudando compensa as situações ruins”, comentou. 


Como lidar com a “chuva de notícias” na comunicação das Olimpíadas

Beatriz Cardoso Ennes Souza e Victoria Rohan Sarmento Lopes

“É uma chuva de notícias”. Ao definir assim o que acontece num evento tão grandioso, o diretor de comunicação do Comitê Olímpico e Paralímpico, Mário Andrada, reconheceu que ele próprio será incapaz de acompanhar integralmente a cobertura da imprensa dos Jogos de 2016, tamanha quantidade e variedade de informação veiculada. Em vista disso, afirmou que seu objetivo principal é trabalhar para que a “energia positiva” que emana dos atletas e do público contamine a cidade.

Andrada ofereceu um quadro abrangente sobre o tema de sua palestra – “a estrutura de comunicação no megaevento” –, que encerrou o XI Controversas. Mencionou a previsão de que 25 mil jornalistas credenciados e 8.600 não credenciados participarão da cobertura, com uma expectativa maior em comparação aos Jogos de Londres, uma vez que serão televisionados tanto o desempenho dos atletas brasileiros quanto o dos demais países — desde treinos e atuação nas classificatórias até a premiação nos pódios.

O executivo alertou, entretanto, para um aspecto particular relativo aos repórteres não credenciados: seu papel será cobrir o que se passa ao redor das competições, e isso representará uma preocupação extra para os jornalistas da grande imprensa, para que não sejam furados por quem atua na mídia alternativa. “Você começa a obrigar o pessoal que está fazendo só esporte a prestar atenção na cidade. A notícia do dia pode ser um recorde quebrado ou um problema na Central do Brasil”.

A crescente popularização das redes sociais também afetará a cobertura. Andrada disse que as empresas de comunicação estão contratando profissionais em início de carreira a fim de ampliar o alcance e atingir o público jovem por meio das diferentes mídias, como Snapchat, Twitter, Facebook. Mas ressaltou que a circulação de informações, em tempos de redes sociais, ultrapassa o trabalho dos jornalistas. “Todo mundo que tem um celular é mídia”, comentou, lembrando de um episódio ocorrido durante um evento-teste de remo no ano passado, quando parte dos voluntários não compareceu e foi necessário se desfazer, por motivos sanitários, da comida que seria oferecida a eles. Entretanto, um gari fotografou a cena com o celular e essa situação incômoda acabou virando notícia.

O legado para a imprensa

A participação do jornalista Roberto Falcão, com sua vasta experiência em assessoria de grandes eventos esportivos – inclusive como gerente de comunicação do comitê organizador dos Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007 –, ajudou muito a qualificar o debate. Na qualidade de mediador, fez perguntas que contribuíram para esclarecer pontos polêmicos em torno da realização das Olimpíadas, sobretudo considerando a crise política no país.

Falcão perguntou, por exemplo, sobre a curva de aprovação do evento. Andrada reconheceu a situação complicada: “A gente está em um momento mais crítico, pelo menos metade da população acha que não vai dar certo. Mas não é o nosso número mais baixo. Nas manifestações na época da Copa das Confederações tínhamos o apoio de 37% da população e agora estamos em torno de 52% a 55%”. Comparou também a situação atual com a de Londres, em 2012, quando o nível de aprovação local ficou abaixo de 50% a três semanas da cerimônia de abertura. Andrada mostrou-se otimista ao mencionar que, após o evento, 92% dos londrinos afirmaram que fariam tudo de novo. Disse que o Comitê brasileiro trabalha com expectativa semelhante ao final da competição.

Falcão também levantou a questão do legado dos Jogos para a nossa imprensa. Andrada apontou vários aspectos: a vantagem sobre os estrangeiros, pelo fato de estarem “competindo em casa” e falarem a língua do país, mas também o contato com grandes repórteres e a possibilidade de observar como eles trabalham e os recursos tecnológicos que utilizam. Fez, inclusive, uma analogia que não foi particularmente abonadora para o nosso jornalismo: conviver com alguns dos mais renomados profissionais seria uma experiência semelhante à dos atletas, que “competem em uma Olimpíada e ficam em trigésimo lugar, mas estão entre os melhores do mundo”.

Andrada concordou com o comentário do mediador sobre os maiores desafios que as Olimpíadas trazem, em comparação com a Copa do Mundo, em virtude da variedade e simultaneidade dos eventos esportivos. A intensidade desse ritmo, disse, será um teste de resistência e capacidade para os jornalistas, mas haverá uma compensação inestimável: o ganho de experiência e prestígio, com a possibilidade de exibirem em seus currículos o sonho de todo jornalista esportivo, que é cobrir uma edição das Olimpíadas. Finalizou com o mesmo otimismo demonstrado ao longo da palestra: “Durante 20 dias, o Rio vai ser o centro do mundo. Mesmo para quem não gosta de esportes, as notícias vão sair daqui, e isso pode gerar uma experiência fantástica, um diferencial para os nossos jornalistas”.


Depois da palestra, perguntas sobre corrupção

Vinícius Guahy

No debate que se seguiu à palestra de encerramento do XI Controversas, Mario Andrada foi questionado pela plateia a respeito de casos de corrupção durante a organização dos Jogos.

Em março, quando surgiu a chamada “Lista da Odebrecht”, na qual políticos, incluído o prefeito Eduardo Paes e o governador licenciado Luiz Fernando Pezão apareciam como possíveis destinatários de recursos ilegais provindos da construtora, Andrada concedeu uma entrevista em que dizia confiar na inexistência de corrupção nos projetos olímpicos.  Agora, a menos de um mês para a abertura dos Jogos, o otimismo se mantém?

Ele respondeu que sim, por algumas razões objetivas: porque a concorrência foi aberta e porque os membros do Comitê estavam obcecados em não deixar passar nada de origem duvidosa. “Tínhamos dois compromissos. Um, não aceitar dinheiro público na organização dos Jogos. O outro era não deixar passar roubalheira. É bem divertido ver como, depois de um certo tempo, você pega as coisas e é bem divertido também ver como as coisas vêm embrulhadas, não é só um grande contrato com uma grande construtora”. 

Ao falar da escolha das construtoras, Andrada não se mostrou tão seguro sobre a ausência de atos ilícitos, pois, segundo ele, este não é um terreno em que seja possível botar a mão no fogo. No entanto, argumentou que, devido à crise econômica e a consequente falta de repasse de verba do governo federal para o município, o custo dos Jogos precisou ser achatado e isso poderia provocar desinteresse em quem “vive dessa forma”.

Além disso, o diretor explicou que, por ser um evento público de grandes proporções, o Ministério Público e os que ele chamou de “os caras da Lava Jato” estavam de olho. Isso, de certa forma, espantaria os mal-intencionados. “Minha confiança se baseia nisso, no controle interno do Comitê, e no controle externo, por ser um evento público com muita publicidade e com uma margem de lucro não muito grande”.

Outra questão levantada pela plateia foi a do envolvimento do croata Sead Dizdarevic, dono da Jet-Set, com os Jogos do Rio. Em junho, o portal UOL reproduziu reportagem de Lúcio de Castro para a Pública sobre a atuação desse empresário na corrupção de membros dos comitês olímpicos em anos anteriores e em manobras ilegais relacionadas à venda de pacotes de ingressos, hospedagens e até mesmo à escolha das sedes dos Jogos.

“O contrato que ele tem com a gente é de um software de chegadas e partidas que ajuda você a monitorar os Vips ou atletas que estão chegando. Esse software é o melhor e mais barato do mercado, então eles ganharam a concorrência limpamente”, esclareceu Andrada. Disse ainda que o grande negócio da empresa de Dizdarevic é a venda dos ingressos, com lucros milionários por por evento. O Comitê, segundo o diretor, conseguiu uma grande vitória ao proibir o empresário de vender esses ingressos na Espanha, Irlanda e Grécia, mas mesmo assim é muito difícil controlar a expansão dos negócios do croata. E arrematou: “O cara é bem malandro. O cara é um bandido”. 

Tranquilidade diante da hipótese de atentados

Vanessa Ribeiro Barcellos
A questão da segurança e a possibilidade de atentados terroristas nos Jogos Olímpicos foram temas levantados pelos estudantes que assistiram à palestra de Mário Andrada. Ele afirmou que não tem “medo nenhum” de que isso ocorra, pois confia nos cuidados que as polícias estão tendo, "só a brasileira”, disse. 

Segundo ele, desde o ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, em 2001, se intensificou a preocupação das autoridades com segurança, já que muitos achavam que a região da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai) poderia se tornar um alvo. Embora diga que a possibilidade de o Brasil estar correndo perigo é pequena, ele não deixa de reconhecer que eventos como os Jogos Olímpicos trazem grande destaque para o país, o que atrai a atenção dos terroristas.

Andrada argumentou ainda que o novo modelo de terrorismo – com atentados como os ocorridos recentemente na França, Bélgica e Istambul – pode ser controlado no ambiente de um evento como as Olimpíadas, considerando a necessidade de entrada com credenciais e a forte presença de policiais em áreas próximas dos locais de competição. 

Citou ainda a relação de mais de 110 países que contribuem com o monitoramento de entrada e saída de criminosos, mandando ao Brasil relatórios sobre as pessoas mais procuradas em cada país. Deu como exemplo a prisão do líder de uma das torcidas organizadas mais violentas da Argentina durante a Copa do Mundo ocorrida no Brasil em 2014.


No final do debate, em que vários dos palestrantes se reuniram para uma última sessão de perguntas, uma aluna mostrou curiosidade em saber como o Comitê e até mesmo os jornalistas – também direcionou a pergunta à jornalista e apresentadora da Rede Globo, Carol Barcellos – estão sendo orientados e como devem agir caso ocorram ataques durante os Jogos. 

Carol citou uma matéria publicada no jornal O Globo com a relação das precauções que todos deveriam tomar em situações inusitadas e suspeitas. Mario Andrada completou dizendo que esse tipo de recomendação o deixa tranquilo justamente por saber que existem alertas sobre o assunto. Entretanto, afirmou que o excesso de cuidado pode acabar gerando um sentimento de pânico na população, que é tudo o que se pretende evitar. 


domingo, 2 de outubro de 2016

A experiência internacional de um jovem jornalista multimídia

Luísa Silveira de Araújo

Do seu quarto de hotel em Paris, onde estava para a cobertura da Eurocopa pelo SporTV, Colin Vieira posicionou a tela do seu laptop de um jeito que captasse a imagem da Torre Eiffel. “Não foi pra tirar onda, foi pra compor o cenário e ficar bacana”, disse ele, chamando a atenção para o monumento iluminado.

Já era madrugada na capital francesa quando o professor João Batista de Abreu, no palco do auditório Interartes, começou a conversa via Skype com seu ex-aluno, formado em 2009. Sem problemas com a conexão, Colin falou por cerca de 40 minutos sobre sua trajetória, desde a graduação até suas conquistas profissionais mais recentes.

A Europa já havia sido sua casa quando, aos 19 anos, o então estudante fez um intercâmbio na França. A experiência, além de lhe proporcionar o domínio da língua – que mais tarde abriria portas em sua carreira, como a própria cobertura da Eurocopa –, ensinou-lhe a lidar melhor com pessoas de culturas diferentes.

Em seu currículo constam eventos como os Jogos Olímpicos em Londres (2012), Copa do Mundo no Brasil (2014), Jogos Pan-Americanos no Canadá (2015) e, em breve, as Olimpíadas no Rio de Janeiro (2016), que começa no dia 5 de agosto. Atualmente, como editor do SporTV, Colin é o que se pode chamar de profissional multimídia.

Entretanto, para chegar nessa posição, ele teve de passar por muitos trabalhos que definiu como “importantes, mas bem chatos e braçais”.

Com seu jeito espontâneo, e sabendo que falava para jovens estudantes, Colin entusiasmou e divertiu a plateia pela maneira como relatava sua experiência. Todo mundo riu, por exemplo, quando ele destacou a importância do curso de jornalismo na sua formação e deu um exempo: “os textos da Sylvia Moretzsohn, eu nem sei se ela está aí me vendo, na época eu lia e não entendia nada, mas depois eu vi como eram importantes”.

Estimulado pelo professor João Batista, falou também da importância de sua relação com o jornalista Teixeira Heizer, recentemente falecido: “Eu frequentava a casa dele, ficava ouvindo as histórias que ele contava, os conselhos, ele me estimulou muito a seguir essa carreira”.

Colin lembrou de seu primeiro trabalho no exterior, as Olimpíadas em Londres: “Tudo acontece ao mesmo tempo, é muito rápido, desesperador”. Sentiu muita pressão, pensando na responsabilidade de levar toda aquela informação a milhões de brasileiros. Foi um impacto que o ajudou imensamente na carreira. Hoje, bem mais experiente, o ritmo, que há alguns anos era um desafio, é encarado com mais facilidade. A capacidade de dialogar com pessoas de diversas funções e de estar sempre aberto a discussões, além da grande consciência da responsabilidade do trabalho jornalístico, são características que ele aprendeu a cultivar na universidade e que o ajudam no seu cotidiano profissional.

Trabalhar no exterior é uma experiência totalmente diferente já que cada país tem sua própria cultura, seus próprios hábitos e também sua própria maneira de fazer notícia. Colin assinalou que em eventos essencialmente estrangeiros, como a Eurocopa – que apesar da grande audiência no Brasil não conta com atletas brasileiros – os repórteres locais se preocupam quase exclusivamente em cobrir o esporte, enquanto os estrangeiros têm um olhar diferenciado sobre o lugar, detalhando o máximo do contexto e do local para o público, muitas vezes não familiarizado com as cidades nas quais ocorrem esses eventos.

Talvez por isso seja fácil ver jornalistas correspondentes falando exatamente onde estão, qual a temperatura do dia e mesmo citando hábitos locais que pareçam estranhos ao público. Mas Colin disse que gosta mais de cobrir competições com atletas brasileiros, pois o senso de responsabilidade aumenta, já que existe uma pressão maior para ser o primeiro a entregar a notícia, sempre mirando em um alto padrão de qualidade.

Trabalhar em diferentes áreas na cobertura de eventos esportivos nem sempre é fácil. A dica de Colin é manter o entusiasmo, não importa se a cobertura é de grandes eventos esportivos na Europa ou no Canadá (sede dos últimos Jogos Pan-Americanos) ou dos jogos de futebol da Série B no Brasil. Hesitou em definir sua atividade preferida, mas no fim admitiu que o que mais gosta de fazer é coordenar a transmissão para veicular a matéria da melhor maneira possível.

Um portal, um blog e uma conversa sobre as possibilidades do jornalismo na internet

Fernanda Andrade Maia

A crise das grandes empresas jornalísticas tem levado à necessidade de se pensar em novas possibilidades de exercer a profissão além dos limites da mídia tradicional. Foi isto que Cristina Dissat e Nataniel Souza colocaram em questão ao falar sobre “empreendedorismo e jornalismo na internet”. Criadores, respectivamente, de um blog e um portal de jornalismo esportivo, ambos trataram também de política e da preocupação social nessa área que muitas vezes é resumida a “apenas futebol”. 

Ainda que tenham sido iniciados como projetos despretensiosos, o Fim de Jogo de Cristina Dissat e o Noticiário Paralímpico de Nataniel Souza seguem crescendo como referência em suas respectivas áreas. O sucesso dos dois abre espaço para uma discussão que se torna cada dia mais presente na realidade da comunicação social: as mídias que alguns chamam de “independentes”, outros, de “alternativas”, e que exploram as possibilidades tecnológicas abertas com a internet para dar foco em pautas que normalmente são negligenciadas pelas mídias tradicionais.

Nataniel, 25 anos, contou que sua ideia surgiu em sua pesquisa para o trabalho de conclusão do curso de jornalismo na UniSuam. A dificuldade em encontrar material já pronto sobre os esportes paralímpicos o motivou a dar continuidade ao site, que deveria ter sido ativado somente durante o período da avaliação de seu projeto na universidade e hoje conta com uma equipe de colaboradores, uma delas a atleta paralímpica e também estudante de jornalismo Taiane Lopes.

Seu site, de fato, foi o primeiro do Brasil a tratar somente de esportes paralímpicos. A boa resposta que recebeu demonstrou que respondia a uma demanda: aqueles atletas que antes não se viam noticiados agora buscam o Noticiário Paralímpico e sua equipe e mantêm contato através de outros projetos, como a ONG Urece. Durante o Controversas, Nataniel contou sobre a ocasião em que foi chamado pelos atletas a participar dessa ONG após fazer a cobertura de um jogo de futebol para cegos. “Os atletas ficaram felizes”, diz, “nem a própria família dos jogadores comparecia aos jogos”. 

Mas mesmo o esporte mais popular do país tem pautas desprezadas pela grande imprensa. É nessa brecha que atua Cristina Dissat, valendo-se de uma vantagem extra: o fato de morar em frente ao Maracanã. Sem se subordinar a um editor, a jornalista pode perceber situações novas e noticiá-las imediatamente. Foi o caso do dia em que ela notou que o estádio estava aceso, embora sem atividade. “Eu pensei: por que está aceso se não está acontecendo nada? E fui lá ver”.

Sócia Diretora da Agência de Conteúdo DC Press, Cristina pensou em abrir seu blog como uma forma de ajudar os leitores interessados em ir aos estádios e oferecer-lhes outras possibilidades de informação. Considera que o público busca notícias inicialmente nos sites de grandes veículos e depois acessa redes sociais e blogs para ver os desdobramentos e novidades. É nesse processo, segundo ela, que o leitor formará sua opinião.

O detalhe que fez diferença


A possibilidade de se sustentarem profissionalmente seus projetos na internet foi outro tema importante. Ambos afirmam ser um mercado difícil, com pouco retorno financeiro, e que exige o conhecimento de todo o processo de produção de notícias, desde a apuração até a edição. No caso do Noticiário Paralímpico, o trabalho é voluntário, mas no começo do site um patrocínio possibilitou a compra do domínio e da hospedagem sem que Nataniel tivesse que arcar com essas despesas.

Um detalhe chamou a atenção logo na abertura da conversa. Ao apresentar os debatedores, o mediador, professor Márcio Castilho, deu um resumo do currículo de ambos mas assinalou que Nataniel Souza era morador do Morro do Alemão. 


O fato de entrevistadores e repórteres sempre salientarem a origem de Nataniel ao apresentá-lo é significativo: é uma forma de valorizar a luta de quem é discriminado. O estudante, que é negro, reconhece isso e afirma ser difícil ignorar as questões políticas e sociais que sua própria origem faz aflorar, quando vai falar sobre seu projeto. Para ele, a questão política é mais implícita do que qualquer comentário que ele possa fazer, e considera que a desigualdade social fará parte de qualquer projeto que venha a assumir. 

Um projeto contra a exclusão

Victor Brunet

Um projeto idealizado por um jovem negro morador de favela que valoriza atletas marginalizados por sua deficiência física tem esse sentido especial de jogar luz em duas exclusões. Por isso, sua relevância social é muito maior do que a imaginada: não se trata apenas de divulgar um setor esportivo sistematicamente ignorado pela mídia, mas de abrir espaço para a voz da periferia.

O Noticiário Paralímpico, que já foi pauta de jornais hegemônicos, rendeu a Nataniel Souza o prêmio de Cidadão Socialmente Responsável da universidade onde estuda. A promoção e a valorização de um projeto sociocultural vindo do Complexo do Alemão, retratada pela mídia como o antro do tráfico e da criminalidade, é um feito que possibilita uma nova visão sobre as comunidades e seus potenciais a serem explorados.

A mudança no ponto de vista sobre a periferia, entretanto, é lenta e gradual. Questionado sobre a segurança no morro onde vive, especialmente em época de Olimpíadas, Nataniel ressaltou que há a expectativa de um cerco militar em torno das favelas da cidade do Rio de Janeiro durante o evento – medida que, na visão dele, visa a isolar o morro do restante da cidade, a pretexto de combater o crime.

Ainda segundo o estudante, a segurança nas favelas do Rio é insuficiente. Em entrevista ao site Voz das Comunidades, Nataniel comenta sobre as dificuldades de quem vive o dia a dia na favela: “Nunca fui de ficar na rua, sempre que acontecia tiroteio estava dentro de casa ou trabalhando”, diz. No entanto, mesmo com todos os problemas que ainda enfrenta no morro onde mora, não aceita ser discriminado: “Não é por ser morador de favela que sou inferior a alguém”.



sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Lúcio de Castro dá exemplo de resistência

A dificuldade de se fazer jornalismo no contexto da maior crise política que o país vive desde o fim da ditadura foi o tema da mesa de abertura do XI Controversas, que recebeu os repórteres Lúcio de Castro e Mariana Filgueiras para discutir como enfrentar a cobertura dos Jogos Olímpicos num momento de tamanha gravidade. Mas o debate, mediado pela professora Sylvia Moretzsohn, foi mais abrangente e enveredou pela crítica do jornalismo praticado nas grandes empresas.

Diferentemente de tantos colegas que costumam pisar em ovos quando questionam a profissão, Lúcio de Castro abriu o verbo: “não existe jornalismo investigativo no Brasil”. Seria uma afirmação tão categórica quanto exagerada – afinal, há exemplos de grandes repórteres, como ele próprio, empenhados nessa tarefa. Mas, de fato, são exceções que confirmam a regra. Lúcio lembrou a famosa definição do jornalismo como a tarefa de “publicar aquilo que alguém poderoso quer esconder, e o que se vê é o contrário disso”. Em seguida, deu vários exemplos para fundamentar sua crítica, demonstrando como os editores evitam a publicação de reportagens inconvenientes.

Uma delas foi a que ele próprio realizou sobre os negócios da família do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e que acabou saindo na CartaCapital. O interessante, disse, teria sido publicá-la em algum jornal conservador, para atingir um público normalmente alheio a esse tipo de denúncia. Mas não foi possível furar o bloqueio: previsivelmente, todos os procurados rejeitaram a pauta. Muito divertido, Lúcio contou como enfiou a carapuça num editor que tentava sair pela tangente, sempre adiando uma resposta e evitando uma recusa frontal àquela oferta: “Num determinado momento eu disse a ele: faz assim, onde está escrito FHC, escreve Lula, e onde está escrito PSDB, escreve PT”.

A tentativa de compensar a falta de reportagem com a profusão de espaços de opinião seria mais um sintoma dos desvios da profissão. “Dar opinião é ótimo, mas ela não muda o mundo. O que muda o mundo é a reportagem, e é na reportagem que se controla um jornal”. A constatação da ausência de reportagem o levou a outra afirmação categórica ao tratar do tema específico do debate: “as Olimpíadas já são mais um imenso fracasso do nosso jornalismo”, porque “questões fundamentais de desvio de verba, remoções, de toda a grande sacanagem que aconteceu” não foram noticiadas como deveriam.

Lúcio condenou também a cobertura “chapa branca”, que tanto diz respeito à subordinação do jornalismo a interesses comerciais – quando, por exemplo, uma rede de televisão compra os direitos de transmissão de um grande evento – como à aceitação acrítica da declaração das fontes. Nesse caso, ressaltou o eterno diagnóstico sobre a “falta de preparo psicológico” dos atletas brasileiros nos momentos decisivos, como ocorreu no fatídico 7 a 1 contra a Alemanha, na última Copa do Mundo: “Isso é uma forma de reiterar o complexo de vira-lata e de encobrir as responsabilidades dos dirigentes na falta de estrutura e na falta de empenho para a massificação do esporte”.

Formado em História e em Jornalismo, Lúcio trabalhou nas redações do Jornal do Brasil, O Globo, TV Globo, SporTV e ESPN Brasil – “fui demitido de todas” – e ganhou vários prêmios em seus 17 anos de carreira, entre os quais o Gabriel García Márquez, em 2013, pela série “Memórias de Chumbo – o futebol nos tempos do Condor”. Sua mais recente reportagem, “O senhor dos anéis”, na Pública, desvenda a atuação do croata Sead Dizdarevic nas transações que movem o grande negócio das Olimpíadas. A veemência de suas críticas durante o debate expressaram a indignação típica de quem ama o seu ofício. É assim que se pode entender a frase com que encerrou sua intervenção: o jornalismo “é uma merda, mas é muito bom”. O recado é claro: as condições de trabalho são terríveis, o grau de canalhice é tremendo, mas vale a pena resistir. 

(Participaram desta cobertura Eduarda Pereira Garcia, Jackeline de Oliveira Pinho, Jéssica Riquenha e Julliana Reis) 

Contra a autocensura

Jéssica Riquena e Julliana Reis

Repórter do Segundo Caderno do jornal O Globo e há muitos anos dedicada ao jornalismo cultural, Mariana Filgueiras vai integrar a equipe de cobertura das Olimpíadas com o entusiasmo de quem pretende aproveitar essa rara oportunidade, seja pela variedade de pautas proporcionada pela presença dessa multidão de atletas de origem tão distinta, e que vão muito além do que é próprio do jornalismo esportivo, seja pela “rede de contatos fabulosa” que a vinda de jornalistas do mundo inteiro permite criar.

Suas expectativas, entretanto, não apagam o senso crítico a respeito da profissão. Como Lúcio de Castro, Mariana tratou de questões mais gerais da atividade jornalística e assinalou sobretudo a autocensura como um dos problemas mais graves do cotidiano das redações, que acaba favorecendo a falta de pluralidade nas pautas. “As pessoas estão ficando apáticas, alienadas. A notícia está aqui e você não quer vender para não ter o stress, para não incomodar... e, assim, vai-se fazendo o jogo da indústria”.

Lúcio aproveitou para comentar: “é por isso que tantos jornalistas dizem que nunca sofreram pressões ou constrangimentos. Porque já estão completamente adequados aos padrões da empresa”.

Mariana reiterou a necessidade de respeito aos princípios básicos que norteiam a profissão: “é fundamental ter compromisso com a verdade factual, fiscalizar o poder público e ter espírito crítico”. Ressaltou ainda a necessidade ter consciência do próprio papel como profissional: “Nenhum de nós é a empresa. Por mais que a linha editorial seja clara, eu continuo sendo repórter. Minha obrigação é sempre vender para o editor o que é notícia, ainda que o jornal vá recusar”. 





sexta-feira, 17 de junho de 2016

As conexões brasileiras do "Senhor dos Anéis"

Por Lúcio de Castro* em 13/06/2016. Originalmente publicado no site Agência Pública

Conheça Sead Dizdarevic, o empresário croata que traz na bagagem histórias de corrupção e negócios lucrativos à sombra das Olimpíadas

O “Senhor dos Anéis” está chegando, cercado por histórias de corrupção, compra de votos e milionários negócios à sombra do mundo olímpico. Quem quiser saber como funciona o lado B das Olimpíadas, as conexões brasileiras, o esquema de venda de ingressos, ou entender a razão das dificuldades para conseguir um bom lugar para ver as competições, guarde bem este nome: Sead Dizdarevic.

É o todo-poderoso que detém a chave das melhores relações com o Comitê Olímpico Internacional (COI) e com o Comitê Organizador Rio 2016 (CoRio); o dono da Jet Set Sports e da CoSport; personagem-chave por trás de um dos maiores negócios que envolvem o esporte brasileiro: a Tamoyo Internacional, que, detentora do monopólio da venda dos milionários pacotes de hospitalidade que negociam os combos de ingresso/hospedagem da Olimpíada no Brasil, foi a agência oficial do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) desde a ascensão de Carlos Arthur Nuzman à presidência até 2012, e parceira em contrato de passagens do CoRio, que tem o mesmo Nuzman na presidência. É a agência responsável pelas milionárias transações das vendas de passagens aéreas para boa parte das confederações esportivas nacionais, turbinadas por verba pública vinda das leis de incentivo e convênios com o Ministério do Esporte.

Muitos dos nomes de pessoas físicas e jurídicas que você vai ler aqui como a parte da conexão nacional de Dizdarevic são personagens em comum de outro rumoroso enredo do esporte nacional, encontráveis no “Relatório de Auditoria 201407834” da Controladoria-Geral da União (CGU), que auditou a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). São peças importantes da engrenagem mostrada na série de reportagens “Dossiê Vôlei”, que, publicada em 2014-2015 na ESPN, gerou a investigação da CGU.

A “trilha interna”

Sead Dizdarevic, proprietário da Jet Set Sports e da CoSport | 
imagem: Divulgação

Comecemos pelo topo. Sead Dizdarevic vai desembarcar por aqui discretamente e longe dos holofotes, como faz desde sua primeira visita ao Rio de Janeiro, em 2009, ano em que a cidade foi escolhida para ser sede olímpica dali a sete anos e em que começou o súbito interesse pelo Brasil desse croata naturalizado americano, 65 anos. De lá para cá, esteve aqui 13 vezes, geralmente a bordo de seu jato particular. A cada dois anos é assim: viaja várias vezes aos locais das Olimpíadas de inverno ou de verão. E sai com milhões de dólares a mais na conta – amparado nas relações locais, em cartolas e em comitês.

A porta de entrada de Dizdarevic no mundo olímpico é uma típica história que comprova o ditado segundo o qual a ocasião faz o cidadão. A pequena agência de viagens com a qual tentava construir o sonho americano em Staten Island, condado mais esquecido de Nova York, atendia preferencialmente os compatriotas imigrantes da então Iugoslávia. A vitória de Sarajevo como local dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984 foi o salto. Com um pé nos Estados Unidos e a raiz na terra natal, movia-se com desenvoltura entre os dois mundos, abrindo caminho para conquistar um terceiro muito maior e com possibilidades infinitas: o universo olímpico. Era 1984, antes da queda do Muro, com uma Cortina de Ferro burocrática separando os eventuais visitantes. Foi nessa fresta que Dizdarevic conquistou seus primeiros punhados de dólares, sendo a ponte entre esse turista olímpico e o outro lado da Cortina. Oferecer hospedagem, ingressos, desenrolar burocracias, ligar as partes, estava tudo no seu pacote.

Os jogos de inverno e verão ainda eram no mesmo ano. Em 1994, já com uma agenda de contatos olímpicos enriquecida, Dizdarevic deu um salto mais alto. Na pequena cidade norueguesa de Lillehammer, sem quartos suficientes para a família olímpica, ousou fazer um hotel temporário. Já estava com os dois pés naquele mundo fechado, comandado então por Juan Antonio Samaranch.

Em 1996, só uma força muito poderosa poderia destronar Atenas da condição de anfitriã no ano em que os jogos completavam 100 anos. Nos bastidores olímpicos, corria a lenda de que Dizdarevic foi uma dessas forças, um dos pesos fundamentais no prato americano. A lenda se confirmou quando o Seattle Times entrou com pedido na Justiça americana e conquistou o direito de quebrar o sigilo do processo sobre subornos olímpicos em que Dizdarevic era um dos protagonistas. Entre os papéis arquivados no processo, estavam as pegadas dele, atestadas em um memorando de Bill Payne, com data de 1988, apreendido nas investigações, em que o líder da candidatura de Atlanta indicava a necessidade de aliança com o homem da Jet Set. “Ele tem sido muitas vezes altamente recomendado para nós como alguém que tem a trilha interna. E também conhece e tem amizades com muitos membros do Comitê Olímpico Internacional (COI).”

O processo mostra mais, segundo o Seattle Times. Antes da votação, enquanto o mundo e mesmo os mais informados sobre os labirintos do COI davam Atenas como barbada, Dizdarevic garantiu com todas as letras a Payne que Atlanta seria vencedora. Sua palavra era respaldada: entregou uma lista a Payne com o nome dos candidatos que poderia influenciar. Pouco tempo depois, o mundo inteiro se surpreendeu com a maior zebra da história dos conclaves olímpicos: Atlanta tinha derrubado a mais do que favorita Atenas, em eleição realizada em Tóquio, no ano de 1990. Certamente apenas um cidadão no mundo não se surpreendeu. Aquele que já tinha antecipado a fumaça branca para Bill Payne, o carmelengo olímpico – Sead Dizdarevic.

Para a sede americana, a conta de tão alto qualificado lobista veio ainda no mesmo ciclo olímpico. Em 1994, Payne anunciava que aprovara um acordo tripartite entre o Comitê Organizador Local (COL), o Comitê Olímpico Americano (USOC) e o Senhor dos Anéis: a Jet Set abocanhou a exclusividade dos pacotes de hospitalidade para patrocinadores dos jogos. Pelo acordo, 3% das vendas da empresa seriam a comissão do COL e do USOC, com saldo final de US$ 28 milhões para Dizdarevic e resíduo de US$ 844 mil para as outras duas partes.

Se a aprovação do acordo tinha sido de Bill Payne, a assinatura final foi do seu vice no COL, John Krimsky. Em 1995, um ano depois da assinatura do contrato entre Krimsky e Dizdarevic, este último compra, por US$ 225 mil, uma empresa ligada a membros do comitê local. A Cooperative Sports, pertencente à mulher de Krimsky. “Um esquema de propina clássico”, como está nos autos relatados pela reportagem do Seattle Times.

Vale a pena fixar o modus operandi de Dizdarevic: primeiro ajuda a amealhar votos para a vitória da sede olímpica; depois da vitória da nova sede, conquista a exclusividade para os pacotes de hospitalidade e compra uma empresa ligada aos dirigentes locais. Tão engenhoso quanto simples.

O esquema se repete

A traição a Atenas não impediu que Dizdarevic, quando esta por fim se saiu vencedora em 2004, tivesse lucros exorbitantes ali. Resolveu o problema de quartos para os mais abastados transformando luxuosos transatlânticos em hotéis de ocasião atracados no Pireu. Sempre casando habitação e ingressos. A cada edição, o Senhor dos Anéis tem com ele, mais do que qualquer outro mortal, um número maior de ingressos na mão e quartos bloqueados. Para pessoas físicas ou jurídicas. Sem distinguir regime de governo ou sistema político, é sempre o grande vencedor, compartilhando partes de seus lucros com locais, subornos e afins. Em Pequim 2008, pela estimativa da reportagem do Seattle Times, é que tenha tido em mãos 74 mil bilhetes; em Vancouver, no inverno de 2010, 63 mil ingressos.

Ainda mais relevante é a porcentagem dos melhores lugares, os bilhetes mais VIP. Em Sydney 2000, um escândalo que explodiu pouco antes da competição também tinha Dizdarevic como protagonista. Novamente aqui se tem um caminho seguro para entender o conhecido modus operandi do chefão olímpico: uma investigação do governo australiano mostrou que funcionários do Comitê Local tinham desviado ingressos para a Jet Sports e a CoSport. Os números impressionam e certamente frustram quem perdeu horas tentando comprar ingressos via internet, sem êxito, para as provas principais: dos 24 mil lugares considerados VIP nas principais competições, Dizdarevic e os seus tinham 20 mil tíquetes na mão. Também na sede australiana não fez por menos, fiel a seu modo de agir a cada edição: contratou para a Jet Set, com bom salário, a namorada de Phil Coles, homem com chaves importantes na organização de Sydney e membro do COI.

Jim Moriarty, advogado de Houston, Texas, contrariado com os problemas que teve ao virar turista para ver os Jogos de Pequim, resolveu litigar contra o homem da Jet Set, questionando o monopólio dos ingressos e pacotes. Nos autos, diz que o absoluto controle na mão de um só e seus parceiros de empreitada afeta diretamente o preço das entradas e a disponibilidade. Sua definição para a competição que será vista no Brasil em mais alguns dias é cortante, dando a dimensão de quanto o Rio será apenas a locadora de uma bela paisagem e sua população, apenas um elenco de apoio que paga a conta para alguns poucos desfrutarem: “Dizdarevic transformou os Jogos Olímpicos em um playground de ricos e poderosos”.

Segundo reportagem do Seattle Times, Dizdarevic foi um dos grandes responsáveis pela vitória da candidatura de Atlanta, que sediou a Olimpíada de 1996 | imagem: Flickr/Carful

Em entrevista para esta reportagem, Moriarty dá bons caminhos para entender como alguns ingressos olímpicos são estabelecidos com preços relativamente baixos, mas depois somem e só são encontráveis em pacotes. “Há um conflito inerente relativo às vendas de ingressos para as Olimpíadas: o país anfitrião e o COI estipulam bilhetes baratos, mas a demanda por bons ingressos impulsiona o valor de mercado para o céu. Em Pequim, o “preço de tabela” para os melhores bilhetes para a cerimônia de abertura foi cerca de US$ 750, mas as pessoas estavam dispostas a pagar US$ 10 mil para bilhetes de menor qualidade. E Dizdarevic aprendeu há muito tempo como converter esse valor da diferença para pôr o dinheiro no bolso. Décadas atrás, ele aprendeu que, nas mãos gananciosas de pessoas que têm o poder para fornecer ingressos para a Olimpíada, o dinheiro iria gerar uma grande riqueza para ele e seus amigos”, afirma Moriarty.

Sem fazer nenhuma analogia fácil com o esporte, Dizdarevic invariavelmente nada de braçada a cada edição dos jogos, sem enfrentar maiores problemas, a despeito das práticas controversas. Um histórico que torna possível projetar que a Rio 2016 será um agradável passeio tropical para o milionário.

Salt Lake City

A exceção dessas águas sem tormentas ficou com Salt Lake City, em 2002 – o maior escândalo da história dos Jogos Olímpicos e do COI. Como sempre, Dizdarevic teve um lugar de protagonista em todas as tramas que vieram a ser reveladas. Como sempre, saiu ileso. E com posição mais forte no mundo olímpico. Depois de ter perdido o direito a sediar as competições de inverno duas vezes seguidas, a cidade que fica no estado de Utah resolveu tomar caminhos pouco ortodoxos. Mais uma vez, Dizdarevic entrava em cena. De acordo com os processos judiciais americanos descritos pelo Seattle Times, dois altos funcionários do COL de Salt Lake, David Johnson e Thomas Welch, recorreram ao Senhor dos Anéis para ajudar na compra dos votos em 1994, um ano antes da votação. Dizdarevic iniciou ali uma manobra para viabilizar a operação. Como consta nos autos, começa com uma série de saques rotineiros de US$ 10 mil, limite para não chamar atenção do Internal Revenue Service (IRS), o equivalente à Secretaria da Receita Federal brasileira. Assim como no Brasil, saques acima de determinado limite devem ser notificados à Receita Federal. O produto dos saques foi armazenando em um cofre, até que chegou a hora da distribuição. O próprio Dizdarevic assumiu em depoimento que entregava as quantias para suborno à dupla de dirigentes do COL. Quando o escândalo explodiu, Dizdarevic ficou como patriota. “Era meu dever. Sou um cidadão americano naturalizado, e esse é meu novo país”, na torta explicação publicada na imprensa para justificar sua participação. Já os membros do COL foram punidos com o desligamento. Marca de seu pragmatismo, Dizdarevic chegou a depor contra os dois antigos cúmplices com a promessa da Justiça de arquivar o seu caso. Livrou-se. Já contra os dois ficaram 15 denúncias de fraude e conspiração. Para salvar os jogos, assumiu o comando, como gestor, Mitt Romney, que acabou mais uma vez fortalecendo a posição de Sead no movimento olímpico e como vendedor exclusivo dos pacotes de hospitalidade de Salt Lake City.

Por e-mail, Moriarty confirma a versão sobre como Dizdarevic ganhou o selo de agente oficial do COI para comercializar os pacotes dos jogos ao entregar apenas alguns e preservar outros em delação premiada. “Inicialmente, esse comércio foi feito às escondidas, com propinas sob a mesa, mas, quando seu papel como o provedor do plano para trazer ilicitamente os Jogos Olímpicos para Salt Lake City foi descoberto por uma investigação criminal do governo dos Estados Unidos, Dizdarevic tornou-se testemunha para o governo. Ele jogou seus antigos parceiros ‘debaixo do ônibus’ ao fechar um acordo de delação premiada. Em seguida, com um flash de insight brilhante, negociou um acordo com o COI para se tornar o patrocinador de hospitalidade dos Jogos Olímpicos e, ao fazê-lo, legitimou o que tinha anteriormente sido feito com propinas e subornos. Ao controlar tanto a habitação quanto o melhor acesso a bilhetes, ele criou um monopólio de acesso significativo às Olimpíadas para quem não vive na comunidade anfitriã. Agora, quando os ricos e poderosos necessitam de bilhetes olímpicos, transporte VIP e quartos cinco-estrelas, eles chamam Sead e tudo está bem no mundo.”


Dizdarevic também teve papel chave na realização dos Jogos Olímpicos de inverno em Salt Lake City, nos EUA, em 2002 | imagem: Harry How/Getty Images
Em fevereiro de 2012, poucos meses antes do início da edição dos Jogos Olímpicos de Londres, uma câmera secreta do programa Dispatches, da TV inglesa, conseguiu gravar uma conversa de um funcionário da Jet Set, que oferecia, como mais uma das facilidades do pacote de hospitalidade, o acesso ao privilégio de circular pelas rotas de tráfego exclusivas para atletas e poucos credenciados com direito ao conforto.

Jim Moriarty vai além: “Há muitos que acreditam que o COI, e na verdade toda a empresa olímpica, é um pouco mais do que uma empresa criminosa, em muitos aspectos como a Fifa. A ‘marca’ olímpica é a marca mais valiosa do mundo, com bilhões de dólares em direitos de TV e outras receitas. Poucos benefícios chegam aos atletas e suas famílias, e a maioria dos benefícios fica com as pessoas no topo, que vivem vidas que deixariam Gordon Gekko com vergonha”, diz, referindo-se ao personagem de Michael Douglas em Wall Street: Poder e Cobiça, um investidor inescrupuloso e ganancioso.

Quatro décadas depois, o Senhor dos Anéis pôs o mundo olímpico no bolso. Sua agenda de contatos, conchavos, licitações que sempre vence e toda sorte de artimanhas capazes de demolir quem ainda acredita no discurso do “olimpismo” e do “espírito olímpico” dos organizadores, está sendo entregue aos poucos ao filho Alan Sead Dizdarevic, 36 anos, nascido nos Estados Unidos, que será o próximo dono do mundo olímpico. Já entra com a herança garantida de ser o patrocinador e agente de vendas para os Comitês Olímpicos – os oficiais – da Austrália, Bulgária, Canadá, Grã-Bretanha, Noruega, Rússia, Suécia e Estados Unidos.

E assim ele chegou ao Brasil

Se essa história toda do Senhor dos Anéis olímpicos fosse conhecida no Brasil em 2009, a assembleia do COI em Copenhague, no dia 2 de outubro daquele ano, que escolheu o Rio para sede em 2016, provavelmente não teria sido cercada de tanta expectativa e suspense. Afinal, as pegadas de Sead Dizdarevic sempre avisam para onde o vento olímpico está indo. Direção confirmada na goleada do Rio em Madri, na última rodada de votos, por 66 a 32.

É que cinco meses antes do conclave, o homem da Jet Set desembarcou no Brasil pela primeira vez. Os registros de imigração informam que no dia 12 de maio de 2009, com visto de turista, ele andou por aqui. Tiro rápido, breves seis dias de estada. Como em todas as outras vésperas de eleição de sede, mesmo quando está contra todos os prognósticos, seu radar não errou. Não se sabe ao certo se naquela passada rápida Dizdarevic pôs em prática o modus operandi de sempre, repetiu Salt Lake e bancou a certeza da vitória, dando ainda listinha com votos a ganhar. Do que se pode ter certeza é que, logo depois daquele breve flerte da primeira visita, entrou com os dois pés no Brasil. Confirmada a vitória, era hora de estruturar o caminho verde e amarelo para buscar aqui os imensos lucros que fazem dele o verdadeiro Senhor dos Anéis, aquele que só ganha.

Como de hábito, sabia bem onde pisava e foi às portas certas depois da confirmação da sede carioca. No dia 8 de novembro de 2011, de acordo com os registros da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro (Jucerja), abriu a Jet Set Sports Brasil Serviços (veja aqui).

Poucos dias depois, em 20 de dezembro, estabelecia a conexão certa no país da vez para ficar tudo dominado no controle dos ingressos da Rio 2016: a recém-aberta Jet Set assume o controle de 75% da Tamoyo Internacional Agência de Viagens e Turismo (confira aqui), para em 2015 ter o controle total.

A Tamoyo é a senhora das viagens, ingressos e pacotes de hospitalidade em grandes eventos do COB desde o primeiro ciclo olímpico de Carlos Arthur Nuzman, e lá se vão duas décadas de monopólio, enriquecido substancialmente com dinheiro público em seu volume de recursos com o advento da Lei Piva de Incentivo ao Esporte (16/7/2001). Uma lei que Nuzman se empenhou para que passasse a ser chamada Agnello/Piva, em deferência ao ex-ministro dos Esportes Agnelo Queiroz, condenado em primeira instância por improbidade administrativa e presente na deleção premiada da Andrade Gutierrez, no caso petrolão, por propina no Estádio Mané Garrincha.

A relação estreita do COB na gestão de Nuzman e da Tamoyo é alvo de questionamentos há mais de uma década. Em 1º de agosto de 2004, em entrevista para a Folha de S.Paulo, ao garantir que existia licitação para escolher a agência do COB, Nuzman explicou assim a razão de não mudar nunca a agência: “Porque ela ganha”. Os anos se passaram e a Tamoyo seguiu ganhando, sendo a agência do COB para viagens e pacotes olímpicos. Até 2012, quando o COB troca de agência e passa a ter como contratada a Promotional Travel Viagens e Turismo, de Luiz Antônio Strauss de Campos e Flávio Alves da Costa.

Luiz Antônio Strauss de Campos é cunhado da deputada estadual Cidinha Campos (PDT), titular da Secretaria Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Seprocon) e forte aliada do governo do estado do Rio de Janeiro sob Sérgio Cabral Filho, então parte importante da aliança entre os provedores dos jogos. Curiosamente, Strauss era o mais ferrenho crítico da relação entre Nuzman e a Tamoyo. Em 2005, chegou a entrar com recurso contra a licitação de contratos entre o Comitê Organizador do Pan 2007 e a Tamoyo. Na ocasião, a Promotional Travel perdeu a concorrência para a Tamoyo e Strauss questionou as regras, afirmando que elas beneficiavam a vencedora. A Promotional tem vencido também, na maior parte das vezes com dispensa de licitação, concorrências para venda de passagens na área federal como Eletrobrás e UFRJ. A reportagem tentou falar com Strauss, sem retorno.

A saída da Tamoyo do COB ocorre em paralelo à conquista pela agência de contrato de viagens no CoRio 2016 e à diminuição de convênios entre o COB e o Ministério do Esporte, como mostra o Portal da Transparência, que registra o último acordo entre ambos, assinado em 10 de maio de 2012.

Em 9 de janeiro 2012, a Tamoyo, já sob controle de Dizdarevic, assina contrato (nº 026/2012) com o CoRio, com duração de um ano, de “serviços de agência de viagens e de turismo em geral para atender a demanda de viagens do Comitê Rio 2016”. Por mais três vezes, o contrato entre CoRio e Tamoyo recebe aditivos de prazo e valor, até 30 de setembro de 2013. O acúmulo de cargo por Nuzman na presidência dos comitês olímpico e organizador do país, algo inédito na história olímpica, foi duramente criticado por entidades de controle.


A Tamoyo Internacional Agência de Viagens e Turismo, controlada por Dizdarevic, tem contrato de viagens com o CoRio, comandado por Carlos Arthur Nuzman, também presidente do COB | imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por meio da assessoria de imprensa, o CoRio afirmou sobre os contratos com a Tamoyo: “Tivemos contrato com três agências de viagem no decorrer dessa jornada: Primeiro com a Tamoyo e depois com a Flytour e agora com a Alatur. O procedimento aqui é que todos os contratos acima de R$ 1 milhão passem por uma concorrência pública e depois sejam aprovados pelo conselho de diretores. Os valores que você encontrou no balanço do Comitê representam o total de despesas com viagens e foram sempre distribuídos em mais de uma agência. A agência que ficou com a principal parte das nossas despesas de viagem foi a Alatur JTB”.
Os lucros de Dizdarevic com o CoRio foram além de tíquetes. Através da Jet Set, ganhou também um contrato (nº 312/2014) com o CoRio para “fornecimento de software customizável (Sistema), para o gerenciamento das operações de chegadas e partidas, transportes e reserva de acomodações (inventário de apartamentos e quartos) dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016”, assinado em 14 de agosto de 2014 e válido até 30 de setembro de 2016. Valor: US$ 545.300, aproximadamente R$ 1.884.000. A justificativa, de acordo com a resposta do CoRio, é por se tratar de “um software de gerenciamento das operações de chegadas e partidas (Concorrência C690) que eles venceram no preço e também na qualidade, o produto é o melhor do mercado global”.

A reportagem perguntou ainda ao CoRio se o histórico de Sead Dizdarevic, noticiado na imprensa internacional em escândalos de corrupção relacionados às edições dos Jogos Olímpicos, não inibiria a entidade de fazer negócio com empresa encabeçada por ele. “Não temos operações de ingressos com a Jet Set talvez pelos motivos que você citou. Não recebemos um centavo de recursos públicos na organização dos Jogos e portanto podemos trabalhar com empresas nacionais ou estrangeiras, desde que os contratos sejam aprovados pelo Conselho. Preferimos, óbvio, trabalhar com empresas locais, mas os critérios principais seguem sendo custo e capacidade de entrega”, respondeu o CoRio.

No entanto, encontramos ainda o contrato nº 1559/2015 entre CoRio e Jet Set Sports Holding, de “Acordo entre Comitês para a venda e distribuição de tickets, pela outra Parte, a determinado público”, assinado em 30 de setembro de 2015 e válido até 31 de dezembro de 2016. E um anterior com a Tamoyo (nº 034/2011), assinado em 31 de março de 2011, para “compra de ingressos em Londres”.
A reportagem procurou o COB para falar sobre as relações com a Tamoyo, sobre as repetidas contratações da agência e processos de licitação. O COB limitou-se a responder que “a Tamoyo não é a empresa contratada pelo COB desde 2012. A agência contratada pelo COB, atualmente, através de processo público de licitação, é a Promotional Travel Viagens e Turismo. As questões colocadas com respeito à venda de ingressos dos Jogos Olímpicos Rio 2016 são de responsabilidade do Comitê Organizador Rio 2016”. Procurada diversas vezes, a Tamoyo não respondeu aos questionamentos.

Um rosto brasileiro: Cícero Augusto Oliveira de Alencar

A já citada abertura da Jet Set Sports Brasil na Jucerja, em novembro de 2011, e o ato seguinte da empresa ao assumir alguns dias depois o controle acionário da Tamoyo têm um personagem-chave que conecta Jet Set e Tamoyo a entidades e dirigentes do esporte brasileiro. Mais um rosto absolutamente desconhecido do grande público neste relato de conexões e relações: Cícero Augusto Oliveira de Alencar, 62 anos, nomeado diretor de operações e administrador no ato em que Jet Set Sports Holdings e CoSport Australia, ambas de Sead Dizdarevic, formam um braço brasileiro, a Jet Set Sports Brasil, quealguns dias depois assumiria a Tamoyo.

Cícero Alencar, morador da Ilha do Governador, bairro de classe média do Rio de Janeiro, é um dos personagens do “Relatório de Auditoria 201407834”, da CGU, cuja área fazendária auditou a CBV e foi minuciosa ao lançar luz sobre ele – um homem com 136 “Cadastros Nacionais de Pessoas Jurídicas”, o conhecido CNPJ. De acordo com o relatório da CGU, além de constar como sócio em 136 empresas, Alencar é contador de 279 outras. Questionado pela reportagem sobre o número, ele respondeu: “A legislação societária brasileira exige um mínimo de 2 sócios para cada entidade local incorporada. Como temos mais de 300 clientes estrangeiros atendidos por nossa firma, uma grande parcela deles nos contrata para figurarmos como segundo sócio nas subsidiárias locais. É uma prestação de serviço (sempre com uma participação nominal de 1 quota de capital – apenas para cumprir a legislação e ter 2 sócios)”. A reportagem apurou também a participação dele nos registros da Forecast Corp, na Flórida, sobre o que respondeu: “Não só nesta sociedade mas em uma centena de outras empresas no exterior, prestando serviços de administrador nomeado dos investidores em tais sociedades”.

A lente de aumento da CGU pousou especialmente sobre uma das 136 empresas em que aparecia o nome de Alencar, o diretor de operações e administrador da Tamoyo, que, de acordo com o relatório, também constava como sócio-administrador da Acal Auditores Independentes, responsável pela auditoria de convênios da CBV. Boa parte dos convênios auditados pela Acal na CBV era relativa a recursos destinados à Tamoyo.

Assim, como mostra a CGU, quem auditava as contas da CBV representava um dos beneficiários dos convênios, a Tamoyo. A CBV pagou R$ 154 mil pelo serviço da Acal. As auditorias foram realizadas a partir de maio de 2013. Antes, eram feitas pela PS Contax, cujo sócio Nelson Fernando Marques Plaltzgraff passa a ser da Acal também a partir de maio de 2013, de acordo com a CGU, que encontrou ainda pagamentos da CBV para a Acal e PS Contax sem previsão contratual. O órgão destaca que a PS Contax aparecia com o mesmo número de telefone da “Universidade Corporativa do Voleibol” (UCV), onde Ary Graça, ex-presidente da CBV, aparecia como responsável.


Cinco meses antes do Rio de Janeiro ser escolhido como sede da Olimpíada de 2016, Dizdarevic desembarcou no Brasil pela primeira vez, segundo os registros da imigração | imagem: Raphael Lima/Prefeitura do Rio de Janeiro

Além do sócio em comum e das relações com entidades do esporte brasileiro, a Jet Set Sports Brasil tem outro elo com a Acal Auditores: na Jucerja, o endereço que consta para a Jet Set Sports Brasil é também o da Acal. Indagado pela reportagem sobre o eventual conflito de interesses, Cícero Alencar negou. “Baseado em que regulação isso pode ser caracterizado como conflito de interesse? Primeiro que não sou sócio – nem consto do Contrato Social da ACAL Auditores Independentes S/S e portanto não tenho conflito algum com os contratos que esta firma mantém com seus clientes”. No entanto, segundo o relatório da CGU, Cícero era sócio-administrador da Acal Auditores Independentes S/S e se retirou, e segue como sócio-administrador (com 98% das cotas) da Acal Consultoria e Auditoria S/S, que tem três sócios em comum com a anterior. Diante disso, o relatório da CGU afirma: “o que demonstra que elas mantêm um vínculo. Assim, a empresa contratada pela CBV para, inclusive, prestar serviços relacionados a convênios, tinha como ex-sócio e possivelmente parte interessada Cícero Augusto Oliveira Alencar”.

No relatório em que destaca o possível conflito de interesses entre o representante da Tamoyo e o auditor dos contratos que envolviam passagens compradas na empresa, a CGU expõe um quadro em que demonstra que 56% das passagens contratadas pela CBV foram emitidas pela Tamoyo, em um negócio de R$ 2.970.121 só em 2013. O relatório observa ainda que de 2011 para 2013 houve um aumento expressivo na despesa nesse transporte aéreo, com crescimento de 96%.

O comitê presidido por Carlos Arthur Nuzman também teve contrato com a PS Contax. Em 14 de fevereiro de 2011 o Comitê Rio 2016 (CoRio) assinou contrato (nº 04/2011) de auditoria contábil e financeira com a empresa. A reportagem perguntou a Nelson Plaltzgraff se a auditoria da PS Contax estaria disponível e por que, depois de 2011, não voltou a prestar o serviço. O responsável pela PS Contax limitou-se a dizer: “Nós declinamos da prestação de serviço”. Já o CoRio afirmou: “A PS Contax prestou serviços de auditoria financeira entre 14/2 e 20/5 de 2011. Depois disso as auditorias do Comitê têm sido lideradas pela KPMG e Grant Thornton auditores independentes”.

Cícero Alencar aparece também em processo do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2002, assinando a prestação de contas da Petrobras Netherlands ao lado de Almir Guilherme Barbassa, ex-diretor financeiro da Petrobras e da Petrobras Netherlands, afastado após o início da Operação Lava Jato. A reportagem buscou contato com a estatal, via assessoria de imprensa, para saber sobre o vínculo de Cícero Alencar com a empresa e entender por que ele consta na prestação de contas. A empresa informou: “Não consta em nossos sistemas da Petrobras Holding empregado ou ex-empregado com o nome Cícero Augusto Oliveira de Alencar. Adicionalmente, informamos que também não localizamos registros do Sr. Cícero como empregado de empresa prestadora de serviços”.

Já Cícero Alencar respondeu: “De 1999 a 2006 a firma ACAL Consultoria e Auditoria S/S prestou serviços à Petrobras, no Brasil e no exterior, incluindo toda a reestruturação de ativos internacionais que pertenciam à PIFCO – Petrobras International Finance, com sede em Cayman, e que foram conferidos para o patrimônio da PNBV”. Sobre a relação com Almir Guilherme Barbassa, afirmou: “Me encontrei com ele 2 ou 3 vezes nos 7 anos que servimos a Petrobras para discutir resultados de nossos serviços”.

A reportagem perguntou por fim a Cícero Alencar se ele representava alguém na sociedade da Jet Set. E, caso fosse positiva a resposta, a quem? Ele respondeu: “Meu nome foi usado para a posição e administrador da sociedade local, como prestador de serviço – posição que ocupo em outra centena de clientes que necessitam de um brasileiro residente para a posição e que não possuem quadro de empregados no país”.

Bolinha da sorte

Os imensos tentáculos da Jet Set contam também com a sorte. Em 10 de abril, reportagem do “Dossiê Vôlei” mostrara que, entre os 56% de passagens compradas pela CBV na Tamoyo, até a bolinha do sorteio brilhava para a empresa de Sead Dizdarevic – como na licitação de 13 de abril de 2012. Convocadas pelo edital 003/2012 da CBV para “aquisição de hospedagem e passagens aéreas nacionais e internacionais [para] os atletas e membros da comissão técnica das seleções de vôlei de praia adulta feminina e masculina” (verba contemplada no convênio 761160/2011 com o Ministério do Esporte), três empresas entregaram suas propostas: a Master Turismo, a Tamoyo e a BB Turismo (BBTur, agência de viagens do Banco do Brasil, patrocinador da CBV).

Quando os envelopes foram abertos, a Master Turismo foi desclassificada por “ter apresentado proposta sem assinatura e com diversos percentuais de desconto”. Ficaram a BB Turismo e a Tamoyo. Ambas apresentaram o mesmo percentual de desconto: 3%. Como previsto no item 5.1 do edital, sobre “critério de julgamento”, em caso de empate, a decisão é feita por sorteio. Num golpe de sorte, venceu quem leva a absoluta maioria das licitações da CBV e de boa parte das confederações do esporte olímpico brasileiro, incluindo o COB: a Tamoyo, de Sead Dizdarevic e seus sócios brasileiros. A bolinha da sorte representou um contrato de R$ 1.374.390. O ato foi realizado no escritório da CBV pela “Comissão Especial de Licitação” da entidade com os representantes das empresas envolvidas. No mesmo dia, o contrato foi assinado.

Na ocasião, a Tamoyo afirmou ao repórter não ter conhecimento do volume de passagens aéreas e hospedagens, “mas participamos de alguns processos licitatórios da Confederação Brasileira de Vôlei e fomos vencedores de alguns destes”.

Já a CBV afirmou que “consta nos registros da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) que, até o ano de 2012, as agências de viagem que atendiam a CBV foram selecionadas ou por meio de processo licitatório e de compra direta. Entre essas agências estavam a Tamoyo e a BBTUR. A partir de 2013, todas as agências foram escolhidas por meio de licitação, seguindo a Portaria Interministerial 507/2011 /Decreto Federal 6170 e Lei 8666/93”.

O Rio de braços dados com a Tamoyo

As ações da Tamoyo no esporte brasileiro não se restrigem apenas às confederações, COB e convênios do Ministério do Esporte. Em 12 de junho de 2012, o Diário Oficial da União (DOU) publicou que a Autoridade Pública Olímpica (APO), ligada ao Ministério do Esporte, comprou da Tamoyo R$ 100.000 em ingressos para os Jogos Olímpicos de Londres. A dispensa de licitação se dá porque é a única a ter direito de vendas no Brasil dos ingressos olímpicos.

Não importam partido, matiz ideológico ou o poder que está sendo representado. Dizdarevic e seus sócios brasileiros estão sempre bem. Também em 2012, o então governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral pôs o estado para pagar à Tamoyo R$ 2,2 milhões entre ingressos e passagens para que sua turma estivesse na Olimpíada de Londres. No estado que viria a quebrar, sem dinheiro para pagar o funcionalismo, até a primeira-dama estava contemplada, mas a divulgação da reportagem no site UOLfez com que as despesas de Adriana Cabral, de R$ 32 mil, fossem devolvidas. Treze membros do governo foram agraciados com o mimo e desfrutaram Londres.

O prefeito Eduardo Paes não fica atrás em compras na Tamoyo. Desde 2012 até aqui, R$ 3.338.233 dos cofres da cidade olímpica foram para a Tamoyo. Também sem licitação, como os R$ 323.362 pagos à Tamoyo por “prestação de serviços de apoio logístico a ser prestado à prefeitura do Rio de Janeiro por ocasião dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Londres 2012”. Nas asas da Tamoyo, diferentes divisões do governo Paes viajaram ou gastaram: Companhia Municipal de Limpeza Urbana, Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro, Controladoria-Geral do Município do Rio de Janeiro, Empresa Municipal de Informática S.A. (Iplanrio), Empresa Municipal de Urbanização (Rio-Urbe), Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro S.A. e Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro.

Embora todas as esferas de poder gastem com a Tamoyo, a empresa foi mais comedida em financiamento de campanhas eleitorais. Limitou-se a abrir o bolso para o PCdoB – que então dominava o Ministério do Esporte e era grande provedor de verba para convênios de confederações que incluíam compra de passagens –, ajudando com R$ 25 mil a candidatura sem êxito de Márcio Marques dos Santos a deputado estadual pelo partido nas eleições de 2010.

Lá fora, Dizdarevic também é generoso com seus candidatos. Mitt Romney, depois de ter salvado Salt Lake City dos escândalos, como já se contou aqui, se cacifou para voo mais alto. Ousou tentar a Casa Branca em 2008, sem sucesso. Mas, na dúvida, a campanha do fiel amigo desde os jogos de Salt Lake City, em 2002, contou com U$ 9 mil da parte do Senhor dos Anéis, que costumeiramente também ajuda o chapéu do Partido Republicano.

A Prefeitura do Rio de Janeiro, representada por Eduardo Paes, já pagou mais de R$ 3 milhões à Tamoyo, dos quais R$ R$ 323.362 sem licitação | imagem: Ricardo Cassiano/Prefeitura do Rio de Janeiro
Em 2009, o TCU apontou vícios na relação entre o COB e a Tamoyo, em particular para uma licitação de 2008. O relatório falava em “ausência de publicidade e de demonstração dos critérios para avaliação da exequibilidade da proposta”, “não concessão de oportunidade ao licitante para demonstração da viabilidade de seu preço”, “vício no edital” e “prejuízo à seleção da proposta mais vantajosa”, entre outros apontamentos. Em sua defesa, o argumento principal do COB foi a não utilização, nesse pregão, de recursos públicos, aceito pelo TCU, que arquivou o processo, embora com ressalvas, como a recomendação de adoção de algumas medidas para licitações.
Em 14 de julho de 2014, a Jet Set Sports Holding e a CoSport, capitalistas da Jet Set Sports Brasil, por sua vez majoritária da Tamoyo, dão o passo que precisavam para legalizar seu monopólio olímpico por aqui também e alteram o contrato social da Jet Set Sports Brasil para “incluir a atividade de venda de ingressos para eventos esportivos e de pacotes de serviço de hospitalidade” (clique aqui para ver).

Além de passar de Jet Set Brasil Participações para Jet Set Brasil Serviços (veja aqui), a empresa promove a substituição de quem a representa. Cícero Alencar sai de cena na Jet Set e é substituído por Neemias dos Santos Araújo, funcionário da Jet Set. Na Jucerja, o endereço de Neemias também é o da Acal.

As conexões rumorosas da Jet Set no Brasil seguiram. O procurador que representava a Jet Set Sports Holdings e a CoSport na abertura, em 2011, Eduardo Bezerra de Menezes Carreirão, dá lugar a George Pikielny na representação de ambas junto com a mudança no contrato social. Brasileiro, administrador de empresas bem-sucedido, morador de São Paulo, Pikielny é citado em um barulhento e ainda sem solução caso que envolve uma morte misteriosa e a dilapidação do patrimônio do desaparecido. A história foi contada no jornal Centro Oeste Popular, do Mato Grosso do Sul, em dezembro de 2015.

De acordo com a reportagem, em 19 de junho de 2012, Guma Leandro Kaplan Aguiar, carioca radicado nos Estados Unidos, de 35 anos, saiu para passear de lancha e desapareceu. A justiça da Flórida já o reconheceu como morto. Era dono de uma fortuna estimada em US$ 100 milhões. Um ano depois do desaparecimento, de acordo com a reportagem do jornal, as propriedades foram vendidas e as ações, transferidas pelos ex-sócios e administradores à revelia da viúva e dos quatro herdeiros. Pikielny é citado como um desses beneficiados. Esta reportagem enviou perguntas para Pikielny, sem resposta.

Os mistérios e as conexões que envolvem Sead Dizdarevic e seus movimentos no Brasil, transformando seus negócios sempre em um intrincado cipoal, remetem à ação de Jim Moriarty, que correu na Corte da Califórnia sob o número “3:08-cv-03514-jsw”. Nela, o autor descreve algumas características que, segundo ele, compõem o modus operandi de Dizdarevic e conexões: “Os arguidos ocultam ao público suas verdadeiras identidades e informações de contato, em um aparente esforço para permanecer no anonimato e fugir de processo por sua conduta ilícita”.

Outra conexão de Dizdarevic revela o que pode acontecer aqui durante a Olimpíada. Para a Copa do Mundo de 2014, a Jet Set se associou à Match, revendedora oficial dos pacotes de hospitalidade da Fifa, para revenderem os conjuntos de ingressos/hospedagem do certame brasileiro na Austrália, Noruega, Rússia, Estados Unidos e Suécia. Todos se lembram do fim da história: o executivo da Match Raymond Whelan foi preso, assim como o argelino Mohamadou Lamine Fofana, por integrarem uma quadrilha internacional de cambistas. Com Fofana foram encontrados ingressos em nome da Jet Set.

Sead Dizdarevic não aparece por aqui desde sua 13ª vinda, em 5 de novembro de 2015. Em duas dessas ocasiões, geralmente para períodos curtos, de cinco dias, veio com visto temporário e, nas outras 11 vezes, como turista. Não se sabe ao certo como irá desembarcar para os Jogos Olímpicos daqui a algumas semanas. Se vem na condição de turista ou com permissão de trabalho para colher em definitivo os dólares olímpicos que vem semeando nesta terra desde 2009, alguns meses antes da própria escolha da sede – , embora a Jet Set prefira dizer (leia entrevista do porta-voz da empresa) que iniciou suas conversas com a Tamoyo em 2011, ano em que na verdade já incorporou parte da empresa – ainda não está claro.

Pela primeira vez, no dia 14 de agosto, Dizdarevic vai passar um aniversário em meio aos jogos, dos quais continua sendo o maior senhor. Provavelmente brindando com sócios locais de cada edição e as vastas e complexas conexões com comitês organizadores e olímpicos. O Senhor dos Anéis está chegando, com motivos de sobra para festejar seus 66 anos. Salvo eventuais imprevistos no negócio do megaevento, como durante a Copa de 2014, quando homens poderosos a serviço de um esquema milionário acabaram vendo o Mundial no xadrez de uma pequena delegacia policial na Praça da Bandeira.

Entrevista: Jet Set Sports

Michael Kontos é responsável pela comunicação da Jet Set Sports nos Estados Unidos. Nesta entrevista, ele explica a relação da empresa com a Tamoyo, entre outras coisas.

Qual a razão da escolha da empresa Tamoyo para ser a parceira da Jet Set no Brasil?

A Jet Set tem escritórios e operações em dez países, dos quais alguns são resultados de aquisições, como no Brasil. Cada decisão para adquirir uma companhia local foi baseada em estratégia empresarial. A liderança da Jet Set conheceu a Tamoyo como Revendedora Autorizada de Tickets dos Jogos de Londres 2012 (ATR) no Brasil. Impressionada com os serviços e as operações deles naqueles jogos, a Jet Set iniciou discussões com a Tamoyo em 2011, o que eventualmente nos levou a um investimento em operações e depois à aquisição completa da empresa, em setembro de 2015.

A Jet Set tem um histórico de sociedades em empresas ligadas a pessoas com relações aos Comitês Organizadores Locais. Isso se repetiu no Brasil?


Ainda não estou seguro da intenção desta pergunta. A Jet Set tem sido um patrocinador oficial, fornecedor ou provedor de dez dos 11 últimos Comitês Organizadores de Jogos Olímpicos de Verão ou Inverno desde Atlanta 1996. Mas não temos esse tipo de relação com a Rio 2016.

Entre as críticas que a Jet Set sofre, está a de monopolizar os melhores tíquetes e associar estes à hospedagem, encarecendo o preço dos ingressos olímpicos e tornando-os inacessíveis ao público em geral. Como veem essas críticas?

As críticas não levam em conta como os programas de tíquetes funcionam. São desenvolvidos pelos Comitês Organizadores, Rio 2016, aprovados pelo COI. Este programa determina que porcentagem será posta para o público brasileiro em geral, que porcentagem será distribuída para os Comitês Olímpicos de cada país (NOCs) e que porcentagem vai para a família olímpica, autoridades, patrocinadores, mídia etc. É importante lembrar que os melhores lugares são reservados para a mídia, então eles podem transmitir para o público de todo o mundo com os melhores ângulos.

Só a Rio 2016 vende tíquetes para o público geral brasileiro, com o Comitê Organizador determinando que ingressos serão vendidos para o público em geral, o preço e como são oferecidos. A Jet Set não está envolvida com ingressos para o mercado brasileiro em geral.

A Rio 2016, depois, distribui/vende ingressos internacionais para os NOCs, muitos dos quais confiam em Revendedores Autorizados de Tíquetes (ATR) para revender esses tíquetes a seu público. A lista desses revendedores pode ser acessada aqui.

É importante notar que, depois dos direitos de transmissões e patrocínios, bilheteria é a terceira maior fonte de receita do Comitê Organizador. Assim, cada Comitê Organizador, como Rio 2016, precisa dos NOCs para vender o máximo de tíquetes possível, atingindo assim seus objetivos de receitas e diminuindo a pressão sobre o governo local.

Os revendedores não apenas apoiam os NOCs, assim como os Comitês Organizadores, com expertise em vender tíquetes para o público internacional, como também se comprometem em comprar certo número de tíquetes na frente, ajudando assim numa muito esperada receita para os NOCs e os Comitês Organizadores e assumindo alguns riscos, no lugar dos destes, de tíquetes não vendidos, antes que qualquer um seja vendido. As revendedoras, incluindo Jet Set e sua companhia irmã CoSport, então fazem tíquetes individuais/tíquetes e passagens/tíquetes mais passagens mais pacotes de hospitalidade acessíveis de acordo com as demandas e necessidades dos públicos com os quais lidam. Nos 30 anos em que forneceu hospitalidade olímpica, a Jet Set e seus sócios ajudaram mais de 1,2 milhão de torcedores a estar em Jogos Olímpicos de Verão e Inverno, e o nível de satisfação dos clientes consistentemente está acima de 90%.
Gostaria que comentasse os casos de participação em compra de votos para candidaturas olímpicas pelo Sr. Sead Dizdarevic, como amplamente citado na imprensa internacional, o que já o levou a responder na Justiça americana.
O sr. Dizdarevic forneceu informações para as investigações sobre a candidatura de Salt Lake para os Jogos de Inverno de 2002. Isso foi noticiado várias vezes. De fato, desde aquele incidente, a Jet Set foi escolhida como patrocinadora, provedora ou fornecedora por meio de processos competitivos conduzidos pelos Comitês Organizadores de Atenas (2004), Turim (2006), Pequim (2008), Vancouver (2010), Londres (2012) e Sochi (2014), somando ainda Atlanta (1996), Nagano (1998), Sydney (2000) e Salt Lake City (2002). Todas as maiores decisões desses Comitês Organizadores, alguns deles incluindo participação governamental, foram tomadas após passarem por vasta investigação, e todos eles escolheram a Jet Set como seu melhor sócio. Ainda, desde então, a Jet Set e a CoSport foram escolhidas para ser revendedoras de mais de uma dúzia de NOCs, incluindo Austrália, Bulgária, Canadá, Grã-Bretanha, Noruega, Rússia, Suécia e Estados Unidos. Com exceção do comitê americano, todos os outros são organizações “quasi-governmental” (nota: apoiadas pelo governo, mas de gestão privada). A Jet Set não seria selecionada por todas essas organizações se suas alegações fossem precisas.
A Pública enviou diversas perguntas sobre os temas abordados na reportagem também para a agência Tamoyo, no Brasil, e tentou contato diversas vezes para obter as respostas, sem sucesso. Posteriormente, duas das perguntas enviadas para o escritório brasileiro foram respondidas por Michael Kontos, da Jet Set americana:

Era de conhecimento que Cícero Augusto Oliveira de Alencar também era sócio da Acal, que auditava convênios da CBV e do Ministério do Esporte que envolviam compras de passagens na Tamoyo?
Não. Entramos em contato com a Acal com base em uma recomendação de alguém com quem costumávamos trabalhar aqui nos Estados Unidos. A empresa nos foi recomendada porque tanto tinha a experiência e a capacidade de conduzir nosso projeto como nossos prazos. Não tínhamos conhecimento de todos os outros negócios que a empresa tinha conduzido ou com que estava trabalhando.

Qual a razão para que uma empresa de turismo como a Tamoyo tenha feito uma doação de campanha para a candidatura de Márcio Marques dos Santos a deputado estadual nas eleições de 2010?

Isso antecede o nosso investimento e a eventual aquisição da Tamoyo, por isso não temos informações sobre esse tópico.

* Jornalista e historiador, Lúcio de Castro é convidado do próximo Controversas.

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Este blog foi criado para divulgar e documentar a 11ª edição do Controversas, que compromete-se a discutir o fazer jornalístico em tempos de Olimpíadas e crise política. O evento será realizado no dia 5 de julho de 2016, na sala InterArtes, no Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense.

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